sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Uma entrevista com Muamar Kadafi (2)

Quando eliminamos as bases estrangeiras do território líbio e tomamos medidas como assumir o controle da produção de petróleo, entre outras, a Revolução enfrentou o poder imperial e colonial e as poderosas empresas transnacionais. Então vimos a poderosa propaganda contrária às mudanças produzidas na Líbia

STELLA CALLONI *

S.C. - Coronel Kadafi, alguns dos profissionais que têm opinado sobre o Livro Verde, sugerem que a falta de representação seria uma utopia. O que é que o senhor opina sobre isso?

Kadafi: Se em algum momento digo que a mulher não é uma ovelha, estou dizendo-o para um povo onde os ricos trocavam mulheres por ovelhas. E a partir dessas palavras começa a educar-se uma população, dando-lhe outros elementos para seu raciocínio. Então a gente diz palavras que estão destinadas ao povo, a criar consciência em um povo com determinada cultura ou tradição. Muitas tradições, inclusive, estão contaminadas pelas tradições do colonizador e acabaram ficando para nós.

Por isso peço respeito a nossas formas e palavras. A experiência da Jamahiriya demonstra que não é uma utopia, mas uma realidade. Os Congressos Populares, os Comitês Populares estão funcionando.

Isso permitiu à Líbia o desenvolvimento atual que tem e você mesma pode comprovar com toda liberdade que isso é uma realidade. Ninguém pode representar melhor o povo do que o próprio povo.

S.C. - Vencer e derrotar culturalmente o colonialismo deve ser um passo difícil.

Kadafi: Eu digo que o colonialismo pôde vencer na etapa passada graças aos traidores. Os traidores realizam o papel de auxiliares do inimigo na história, atuando contra suas pátrias e seus povos.

S.C. - Vocês consideram os Congressos Populares Básicos como uma fórmula ideal para essa liberdade autêntica de decisão das massas?

Kadafi: Sim, nós devemos buscar fórmulas para que se ponha em prática a verdadeira vontade dos povos. Pensamos que não há democracia sem Congressos Populares nem Comitês. O aparato dos parlamentos não está baseado sobre leis naturais. É um raciocínio simples. Nós não podemos pensar como outra pessoa.

São aspectos naturais, e por isso pensamos que é muito difícil que uma pessoa que tem uma vida muito folgada, com riquezas, que come bem todo dia, a quem não lhe falta nada, possa entender o problema, o drama dos que não têm nada, nem casa, nem comida. Não se pode entender facilmente o pensamento dos explorados ou marginalizados. É um pensamento difícil de interpretar e experimentar, se não é próprio.

S.C. - Como se tomam as decisões em política exterior?

Kadafi: Em princípio, um dos elementos básicos em que está assentada a Jamahiriya, é justamente o apoio e a solidariedade com todos os povos do mundo que lutam por sua libertação. Isto já está aceito como princípio básico. Corresponde à própria existência da Jamahiriya.

Não é necessário que haja uma pessoa que decida e ordene. São os próprios Congressos. Isto impede que as grandes decisões caiam em mãos de uma só pessoa ou pequeno grupo de pessoas e se elimina o perigo de que prevaleçam interesses mesquinhos ou mecanismos individuais.

Ronald Reagan se arroga o direito de decidir o destino de todo o povo ao qual pertence. A decisão do presidente estadunidense pode ser grave e fatal para seu povo, mas este não pode decidir nada para evitar o desastre. Pode-se dizer que o povo norte-americano não toma nenhuma decisão em política exterior, nem interna. Inclusive, Reagan representa uma minoria absoluta dentro da população dos Estados Unidos. Todos os presidentes de Estados Unidos são eleitos por uma minoria absoluta.

S.C. - Não deve ser fácil esta experiência, que vocês estão realizando, considerando a situação em que se encontrava o povo líbio na época do triunfo da Revolução.

Kadafi: A Revolução significa uma mudança de realidade, uma mudança para melhor. É necessário enfrentar a nova realidade de uma mudança contínua, em que se devem superar etapas sociais, econômicas, culturais e outras. Nós consideramos que ninguém pode nem deve desprender-se de sua cultura de origem, mas é necessário adaptar-se aos tempos modernos, sem perder a relação com culturas e tradições.

Lamentavelmente existem aqueles que não podem admitir as mudanças. Existem mentalidades fechadas. Estamos lutando contra essas mentalidades, mas são as novas gerações que assumem as grandes transformações. E também existem os que trabalham para os inimigos dos povos, para os invasores.

S.C. - O senhor deve conhecer o que se escreve sobre a Líbia, e, especialmente em países europeus, o que se diz do senhor, as críticas ao Livro Verde…

Kadafi: Sim, conheço tudo. Há os que chegaram a me entrevistar e não publicaram uma só frase do que eu disse. Atribuem-me palavras que não são do meu uso. Mas eu sei a quem representam os jornalistas que fazem isso, os que nos tratam como se fôssemos ignorantes, os que enganam. Eles representam os interesses do que de pior existe no mundo, dos que são capazes de invadir e dominar povos, matando e matando, das empresas que se apoderam e roubam os recursos dos povos, os que fazem a guerra, sem pensar nos povos em nenhum momento. Jornalistas dos países coloniais são responsáveis por milhões de mortes em nossos povos. Não me importa o que eles digam. São os mesmos que ajudaram os nazis, porque sempre estão junto aos grandes poderes. Eu sei tudo o que dizem, nosso povo o sabe. Mas sabemos o que há por trás disso. Querem nosso petróleo. Nunca nos perdoaram.

Querem retroceder a Líbia para o colonialismo. Olhem o país que estamos construindo, as cidades, as estradas, as obras para irrigar o deserto. Não nos perdoam e então estamos loucos, somos imensamente maus. Assim é toda a história.

As teorias burguesas fracassaram. Ao final disso, só pode surgir uma classe egoísta. Como reação a esse egoísmo e individualismo feroz, se apresenta o marxismo. O marxismo enfrentou o problema das classes dominantes e egoístas, mas ainda falta resolver definitivamente muitos problemas básicos. Mas é um caminho muito diferente do capitalismo.

A Terceira Teoria é um esforço para modificar, inclusive enriquecer no que for possível, outras teorias e fazer realidade a verdadeira era do poder do povo.

Acreditamos no socialismo. Devemos refletir a verdade e buscar permanentemente as formas de refletir os verdadeiros sentimentos dos povos e dar soluções reais. Existem muitos esquemas fechados. É uma luta constante entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto.

Nós sabemos que demos bons passos e por isso estamos ameaçados e vamos estar ameaçados sempre, façamos o que façamos, se não obedecemos a tudo o que se nos quer impor, como fazem outros no mundo.

S.C. - Desejaria que falasse do que sucede com os Estados Unidos, já que me entregaram documentos que assinalam uma quantidade de agressões desse país contra a Líbia. Poderia aprofundar mais sobre a política dos Estados Unidos em relação à Líbia e o enfrentamento permanente que se adverte?

Kadafi: Quando eliminamos as bases estrangeiras do território líbio e tomamos medidas como assumir o controle da produção de petróleo, entre outras, a Revolução enfrentou o poder imperial e colonial e as poderosas empresas transnacionais. Então vimos a poderosa propaganda contrária às mudanças produzidas na Líbia. Isso influiu em alguns governos árabes altamente dependentes das metrópoles coloniais, que voltaram as costas ao velho sonho da unidade.

Nossas mudanças a favor do povo e a utilização dos recursos petroleiros para o crescimento e desenvolvimento verdadeiro, e para a justiça com o povo, demonstravam a corrupta forma como alguns administram seus recursos, deixando de fora os seus povos. Quando viram que a Líbia era importante para os povos da África do Norte, os Estados Unidos se puseram à frente na campanha contra nós.

Desde esse momento começou essa campanha para nos mostrar como país terrorista. Em 1981 me nomearam como "o inimigo público número um dos Estados Unidos". O presidente Reagan, com esses argumentos, aumentou a ajuda militar a seus principais aliados, Egito, os emirados e governos mais conservadores.

Nós continuamos a luta pela unidade árabe, e tivemos a primeira experiência: as tropas dos EUA estacionadas em nosso território se retiraram pacificamente. Empreendemos então um passo estratégico para entabular amizade com os Estados Unidos, baseada no respeito mútuo, mas esse país respondeu à nossa iniciativa com a mesma hostilidade com que havia respondido a Nasser. Tomou medidas contra a Líbia, embargos, atitudes políticas e informativas muito desfavoráveis. E isso foi se agravando.

Essa política não deixou alternativa para iniciativas de amizade com respeito mútuo. E tivemos que nos acostumar e estudar a possibilidade de um enfrentamento militar. Eu lhe digo que o enfrentamento depende tão só dos Estados Unidos, que tem que suspender as medidas unilaterais militares que tomou, e que constituem uma ameaça para a independência do país. Deve evacuar suas bases da ilha de Masira, de Muscat, Omã e Somália e retirar seus aviões Awacs da Arábia Saudita, pondo fim à ocupação do Egito e distanciando suas frotas e força aérea das fronteiras árabes líbias, no Mediterrâneo. Se não há uma atitude justa dos Estados Unidos, um enfrentamento armado e a criação de um estado de guerra serão, desgraçadamente, uma possibilidade em qualquer momento.

Nós somos responsáveis por defender nossa nação e temos o direito à legítima defesa se nos atacam. Se uma guerra estourasse, seriam os Estados Unidos que a teriam imposto, já que nunca agredimos esse país, nem combatemos os norte-americanos em suas terras, como tampouco instalamos bases militares em seu território, nem violamos seu espaço aéreo ou suas águas jurisdicionais. Não são nossos soldados que foram aos Estados Unidos, cruzando tantos quilômetros de oceano.

Temos já sofrido todo tipo de violações do território e do espaço aéreo. Também dizemos que os EUA devem saber que o petróleo dos árabes pertence a eles, que é o recurso mais importante e a existência e sustento da vida de nossos povos.

Porém, seus governos fingem desconhecer essa realidade e consideram o petróleo árabe unicamente como um problema vital para sua segurança e não como uma questão de vida ou morte para o povo árabe, que é o seu dono. Nós, como todos os povos árabes, temos direito a lutar contra os que invadem e ocupam nossos territórios. Temos visto a conduta dos Estados Unidos de fornecer armas, como o fazem com Israel ou Egito. Eles ajudaram à aniquilação do povo palestino e libanês. Os árabes, como qualquer povo, têm o direito e o dever de defender suas terras.

Os Estados Unidos têm duas alternativas. Ou empreender o caminho da paz e retirar suas forças da nação árabe e de todas suas fronteiras, deixando o petróleo para seus donos, adotando uma atitude neutra no Oriente Médio, ou continuar no caminho da agressão e da guerra, como estamos vendo. Tentei dizer tudo isso e enviei mensagens em 1980 ao então presidente James Carter, que postulava um segundo mandato, e a Ronald Reagan, para lhes explicar a situação e a possibilidade de estabelecer relações justas. Não aconteceu nada. Chegou Reagan e avançou cada vez mais a agressão.

Trataram-nos como terroristas, e com todo o direito de nos agredir. Em realidade, são eles os que têm levado adiante campanhas provocadoras, terroristas contra nossos povos. Em 1973, seus aviões decolaram de um porta-aviões durante uma manobra da VI Frota para nos provocar sobre a Baía de Sirte. Em outubro desse ano recorremos às Nações Unidas para advertir que a Baía de Sirte e suas águas jurisdicionais são líbias e que nosso país tem exercido sempre a soberania nessa zona estratégica, que é um ponto vital e de segurança para nosso país.

Resolveu-se a nosso favor, mas os Estados Unidos nunca cumprem esse tipo de resolução e continuaram violando a soberania em Sirte, uma e outra vez. Temos uma longa lista de agressões e já em 1977, quando demos os passos mais importantes para nosso povo, a Líbia foi incluída na lista dos países que os EUA consideravam hostis "por ajudar e contribuir para o terrorismo internacional".

Em 1978, bloqueou-se a Líbia, congelando importações e exportações. Temos um registro muito extenso de ataques, provocações e ações injustas, que não são só militares, mas também políticas, como as que denunciamos em agosto de 1979. Em maio de 1981, descobrimos células de conspiradores dentro do país. E, por outra parte, Washington declarava que ajudaria a todos os países africanos, que, segundo seu ponto de vista, se sentissem ameaçados pela Líbia. Nós nunca ameaçamos a outro país.

Poderíamos encher páginas e páginas, livros inteiros, sobre o que os Estados Unidos fizeram unilateralmente e ilegalmente contra nós e seguem fazendo. Conhecemos mais de uma centena de planos da CIA para me matar, advertimos o Congresso dos Estados Unidos sobre isso e a possibilidade de que nesses atentados e operações fossem assassinadas milhares de pessoas na tentativa de destruir objetivos militares e civis. Fizemos tudo o que um povo sério pode fazer para denunciar essa situação.

A resposta tem sido elevar a agressão. Tudo isso não só ameaça a Líbia como põe em perigo a paz do mundo. As informações e as campanhas estadunidenses mostram a Líbia como um estado terrorista. Porém, os que fazem terrorismo são os Estados Unidos contra nós, contra nosso povo. O único verdadeiro terrorista internacional são os Estados Unidos e seus sócios mais próximos.

Acusam-nos de qualquer atentado no mundo sem prova alguma. Mas isso não lhes importa. Dão por certo fatos supostos e tudo é válido para um país como os Estados Unidos, que nunca vacilaram na sua história em cometer crimes, invasões, massacres, que realizaram e realizam atentados sem que ninguém os castigue, que se dá ao direito de tomar represálias contra qualquer país que tenta trilhar um caminho independente.

Tentei resumir essa longa história de agressões que temos suportado, não só nós como muitos povos no mundo. E em todos os casos têm direito a defender-se. Um direito natural.

EPÍLOGO NECESSÁRIO

Em 1986 tinha retornado à Líbia para entrevistar mulheres e jovens e observar novos e grandes avanços sobre tudo o que se tinha feito para regar parte do deserto e conseguir se auto-abastecer em alimentos. Realizava-se um Congresso de Partidos políticos de esquerda e movimentos de libertação quando se conheceu a presença da VI Frota dos Estados Unidos que bombardearia Sirte, ao que tudo indica tentando localizar a família de Kadafi.

Os participantes do Congresso foram tirados rapidamente da Líbia. Poucos dias depois produziu-se o bombardeio dos Estados Unidos sobre Trípoli, onde morreram centenas de pessoas, entre elas vários estudantes, já que se atingiu a residência onde moravam. Nesse bombardeio foi assassinada uma filha de Kadafi, de apenas três anos, e feridos dois de seus filhos homens. Os aviões norte-americanos foram abastecidos no ar pelos israelenses.

De tudo isso muito poucos falaram nesses dias, antes da decisão criminosa do Conselho das Nações Unidas de abrir as portas a uma intervenção militar injusta e irracional, deixando para trás o caminho da negociação e da paz, cujas portas estavam abertas, como bem sabem todos os diplomatas.

* Jornalista argentina, correspondente para a América do Sul do diário mexicano La Jornada. Autora do livro A Operação Condor que denuncia crimes cometidos pelos Estados Unidos contra os povos da América Latina, entre outras obras.

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