sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Os Verdadeiros Heróis americanos (e do mundo) tratados como bandidos

A coragem de Bradley Manning e o momento da verdade de cada um
Em 2010, o soldado Manning cumpriu o seu dever para com o resto da humanidade e expôs, a partir de dentro, a máquina de assassinar. Este é o seu triunfo; e o seu julgamento-show exprime meramente o medo permanente do poder corrupto de que o povo saiba a verdade
JOHN PILGER*
No julgamento político do século, o momento crítico foi a 28 de fevereiro, quando Bradley Manning levantou-se e explicou porque arriscara a sua vida para revelar dezenas de milhares de documentos oficiais. Foi uma declaração de moralidade, consciência e verdade, as qualidades próprias que distinguem os seres humanos. Isto não foi considerado nos noticiários principais dos EUA; e, se não fosse Alexa O’Brien, uma jornalista freelance independente, a voz de Manning teria sido silenciada. Trabalhando toda a noite, ela transcreveu e divulgou todas as suas palavras. É um documento raro e revelador [v. www.alexaobrien.com/secondsight/wikileaks/bradley_manning/pfc_bradley_e_manning_providence_hearing_statement.html].
Descrevendo o ataque da tripulação de um helicóptero Apache que filmou civis sendo assassinados e feridos em Bagdad em 2007 , Manning disse: "Para mim, o aspecto mais alarmante do vídeo era a aparente e deliciada sede de sangue que eles mostravam. Pareciam não dar valor à vida humana, referindo-se às vítimas como ‘bastardos mortos’ e congratulando-se mutuamente pela capacidade de matar em grande escala. Num trecho do vídeo, há um indivíduo sobre o chão, gravemente ferido, tentando arrastar-se para um lugar seguro... Para mim, isto parece semelhante a uma criança torturando formigas, com uma lupa de aumento". Ele tinha esperança de que "o público ficasse tão alarmado quanto eu" acerca de um crime que, como suas denúncias seguintes revelaram, não era uma aberração única.
Bradley Manning é um denunciante com princípios e um homem que diz a verdade, que foi caluniado e torturado – e a Amnistia Internacional precisa explicar ao mundo porque não o adotou como um prisioneiro de consciência; ou está a Amnistia, ao contrário de Manning, intimidada pelo poder criminoso?
"Está um funeral aqui em Fort Meade", disse-me Alexa O’Brien. "O governo dos EUA quer enterrar Manning vivo. Ele é um jovem verdadeiramente sincero, sem um grama de falsidade. Os meios de comunicação dominantes finalmente apareceram no dia do veredicto. Eles compareceram para mostrar um combate de gladiadores – para observar a luva cair e o polegar apontar para baixo".
A natureza criminosa dos militares americanos está além da controvérsia. As décadas de bombardeios ilegais, o uso de armas venenosas sobre populações civis, as execuções e as torturas em Abu Graib, Guantánamo e outros lugares, tudo está documentado. Como um jovem repórter na Indochina, comecei a perceber que os EUA exportava suas neuroses homicidas e chamava a isso de guerra, até mesmo de causa nobre. Tal como o ataque do Apache, o infame massacre de My Lai, em 1968, não foi atípico. Na mesma província, Quang Ngai, reuni provas de carnificinas generalizadas: milhares de homens, mulheres e crianças, assassinadas arbitrária e anonimamente em "zonas de fogo livre".
No Iraque, filmei um pastor que tivera o irmão e toda a sua família feitas em pedaços por um avião americano, abertamente. Este era o esporte. No Afeganistão, filmei uma mulher cuja casa de adobe, com sua família, fora destruída por uma bomba de 500 libras. Não havia "inimigo". Minhas latas de filmes estão repletas de tais provas.
Em 2010, o soldado Manning cumpriu o seu dever para com o resto da humanidade e expôs, a partir de dentro, a máquina de assassinar. Este é o seu triunfo; e o seu julgamento-show exprime meramente o medo permanente do poder corrupto de que o povo saiba a verdade. Este julgamento também expõe a indústria parasita em torno dos "contadores de verdade". O caráter de Manning foi dissecado e insultado por aqueles que nunca o conheceram e ainda dizem que o apoiam.
O badalado filme "We Steal Secrets: the Story of WikiLeaks" (Nós roubamos segredos: a história do WikiLeaks) transforma um heroico jovem soldado num "alienado... solitário... muito carente" caso psiquiátrico com uma "crise de identidade" porque "estava no corpo errado e queria tornar-se uma mulher". Ao assim falar, Alex Gibney, o diretor, cuja lasciva psico-tagarelice encontrou ouvidos atentos em todos os meios de comunicação demasiado complacentes ou preguiçosos ou estúpidos para desafiar o alarde publicitário e compreender que as sombras que caem sobre os denunciantes podem alcançar eles mesmos. Desde o seu título desonesto, o filme de Gibney executa um zeloso trabalho de esquartejamento de Manning, Julian Assange e do WikiLeaks. A mensagem era familiar — dissidentes sérios são extravagantes. O meticuloso registro de Alexa O’Brien da coragem moral e política de Manning demole essa difamação.
No filme de Gibney, políticos dos EUA e o chefe do estado-maior conjunto das forças armadas são alinhados para repetir, sem contestação, que, ao publicar as denúncias de Manning, o WikiLeaks e Assange colocaram as vidas dos informantes em risco e tinham "sangue em suas mãos". Em 1º de agosto, o Guardian informou: "Nenhum registro de mortes provocadas pelas revelações do WikiLeaks, diz o tribunal". O general do Pentágono que efetuou uma investigação de 10 meses sobre o impacto mundial das denúncias, informou que nem uma única morte poderia ser atribuída às revelações.
Apesar disso, no filme, o jornalista Nick Davies descreve um Assange destituído de coração, que não tinha nenhum "plano de minimização do dano". Perguntei ao cineasta Mark Davis sobre isso. Davis, um respeitado locutor da SBS Austrália, foi uma testemunha ocular, acompanhando Assange durante grande parte da preparação dos documentos divulgados para publicação no Guardian e no New York Times. Ele me disse: "Assange foi o único que trabalhou dia e noite, extraindo 10 mil nomes de pessoas que podiam ser visadas pelas revelações nos documentos".
Enquanto Manning enfrenta a vida na prisão, diz-se que Gibney está planejando um filme em Hollywood. Um filme "biográfico" de Assange está a caminho, de acordo com uma versão Hollywood do livro de mexericos de David Leight e Luke Harding sobre a "queda" do WikiLeaks. Lucrando com a coragem, clarividência e sofrimento daqueles que se recusam a ser cooptados e dobrados, todos eles acabarão na lata de lixo da história. Pois a inspiração dos futuros "contadores-de-verdade" pertence a Bradley Manning, Julian Assange, Edward Snowden e os jovens notáveis do WikiLeaks, cujos feitos não têm paralelo. O resgate de Snowden é em grande medida um triunfo do WikiLeaks: um filme de suspense demasiado bom para Hollywood, porque os seus heróis são reais.

*Jornalista, cineasta e teatrólogo australiano radicado em Londres, correspondente na Guerra do Vietnã, autor de algumas dezenas de documentários, inclusive os premiados "The War on Democracy" (A guerra contra a democracia), sobre as intervenções dos EUA na América Latina, e "The War You Don’t See" (A guerra que você não vê), sobre o "jornalismo embutido" nas agressões imperialistas norte-americanas. John Pilger foi escolhido, por duas vezes, Jornalista do Ano na Inglaterra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário